17 de julho de 2009

Crepúsculo do homem bom

«Será que nós, os imoralistas, fazemos mal à virtude? – tanto quanto os anarquistas prejudicam os príncipes. Só depois de terem sido atingidos de novo se sentam firmemente nos seus tronos. Moral da história: à que disparar contra a moral». Começo, não me permitia o contrário, por «disparar» contra a moral, contra a benevolência, contra a pureza, contra verdades feitas – e reditas pelo calão científico do qual somos «filhos legítimos», que ordenam a acção humana desordenada em si mesmo. Porque «só é novo o esquecido», eu explícito: a visão distorcida que desenvolvemos, quanto aos fenómenos envolventes da humanidade, acontece enquanto a acção do Homem for pensada e equacionada numa lógica de bondade e segundo um conjunto de sedutoras mas falsas ideias claras – perdoem-me a incómoda mas propositada incoerência – relativas à sua natureza e condição.
Primeira verdade: a natureza má do ser humano corresponde à luta permanente pelo poder. Tudo é poder ou vontade de poder. A maldade, traduzida na indisciplinada vontade de poder, é o pano de fundo que sustenta toda a acção do homem em sociedade. A esta verdade imprópria equivale a colossal mentira, alimentada e cultivada por grande parte pensamento ocidental – fruto do raciocínio de «monstros sagrados» que parasitam entre nós e contra os quais nos revelamos incapazes de «disparar», de que o homem é intrinsecamente bom. Entenda-se: ao perspectivar-se o Homem segundo uma lógica de bondade intrínseca considera-se, portanto, as estruturas sociais o motor da sua perversão, sendo estas, capazes de provocar conflitos no seio da sociedade em que vive. Importa, considero eu, optar entre o Homem e o Estado – as estruturas sociais, enquanto enredo tétrico, impedem o ser humano de se libertar. O primeiro é o «valor supremo», em torno do qual, se criam tais instituições. Ao considerar-se que estas o «diminuem» é terminante destruí-las. Em sociedade, os homens, verdadeiros animais políticos, são «lobos uns dos outros» e podendo «comem-se» mutuamente. Esta incómoda mas prudente verdade, ainda que devidamente institucionalizada, resume a lei da vida enquanto lei da sobrevivência – Darwin chamou-lhe «selecção natural».
Segunda verdade: os filósofos iluministas do século XVIII, curvemo-nos perante suas excelências – a assustadora tendência do homem disciplinado e acrítico, partidários do pensamento lógico e da cientificidade comprovavel, perpetuam a sua autoridade nas democracias modernas ocidentais. Perpetuam na medida em que são, mais ou menos continuadamente, as referências de pensamento filosófico que norteiam as diversas concepções que desenvolvemos relativas à condição humana. São, como pensou e escreveu Edmund Burke, «os audaciosos experimentadores da nova moral». Deles, imana a confiança total e ilimitada nas capacidades da razão humana e, por eles, se rejeita tudo o que se lhe oponha. Permitam-me resistir – devo, quero e posso resistir. O que me resta? O elogio da irregularidade.
Este ensaio, na linha de Nietzsche, dirige-se a quem, como eu, prefere «ser sátiro a ser santo». A quem, como eu, prefere caminhar pelos próprios pés. Aos que, como eu, preferem a «verdade independente», ou a sua recusa, às «aliciantes mas falsas ideias claras». Aos que, como eu, tendem a «disparar contra a moral» sem nunca fazer mal à virtude.

Notas Soltas:
Entendam, caros leitores, a ironia, o sarcasmo, a provocação latente, figuras das quais sistematicamente me socorro no exercício dos ensaios, enquanto «estocadas certeiras» ao conjunto de hábitos e práticas de pensamento que repugno. Esclareço: pensar bem não significa pensar como eu. Significa, antes, pensar segundo inferências válidas e sustentáveis. Coso contrário, tornamo-nos reféns de convicções absurdas. Última estocada: de que servem homens de convicções absurdas?

André Manuel Vaz