25 de outubro de 2008

A promessa da política

«A promessa da política é a que aponta para a possibilidade de realização de uma forma específica de liberdade do mundo humano; não aquela que deriva da natureza humana, mas a que se impõe a essa natureza no espaço criado pelo relacionamento humano».
Na tentativa de compreender a realidade política global e as possibilidades da política, Hannah Arendt, desenvolve um exercício crítico onde coloca, no centro do debate, a questão do senso comum, da filosofia, do medo, da liberdade, do Homem político, do pessimismo antropológico, de Deus e do Homem como motor de construção. Em «A Promessa da Política», a autora, entende que existe um domínio, que se estabelece entre a natureza bruta do Homem e o «isolamento de Deus», no qual se pode fruir a verdadeira liberdade. Uma liberdade específica que se impõe no espaço criado pelo relacionamento humano. Segundo a autora, essa liberdade específica, adquire substância na ideia: «nem forçados por nós próprios, nem dependentes de condições prévias da existência material». Esse domínio, como alerta Hannah Arendt, aponta para a «necessidade» de criação de um «espaço intermédio» de convivência que não brota da essência humana mas da interacção entre os Homens.
«O colapso do senso comum no mundo presente assinala que a filosofia e a política, apesar do antigo conflito que as opunha, sofreram a mesma sorte». Enquanto a filosofia, como exercício de pensamento, reflecte um acto interior de cada sujeito a política e o seu exercício actuam sobre algo ou sobre alguma coisa. Uma verdade, parece-me, indesmentível. O contacto entre as duas disciplinas torna-se difícil mesmo quando se percebe que ambas tocam lugares comuns. Há, também, na análise da autora, uma visão negativista sobre a utilidade do senso comum na política. O meu desacordo consiste no facto de entender que a razão, como instrumento analítico, não consegue escrutinar toda a realidade. Nesse sentido o senso comum confere, ao Homem, um sentimento de conforto intelectual. Esse sentimento de conforto intelectual constitui o garante, do mesmo, puder desenvolver reflexões mais complexas.
Hannah Arendt considera o medo e a liberdade condições de difícil coabitação. Explicito: A ausência de lei, ou resulta de «democracias pervertidas», a tal ponto que «a força de uma lei anula a força de outra», ou «fica a dever-se à usurpação dos meios de violência por parte de um tirano». Em qualquer dos casos, a partir «da privação de poder geral», surge o medo e perde-se a «artificialidade». «As tiranias estão condenadas porque destroem a reunião dos homens: isolando os homens uns dos outros, destroem a pluralidade do Homem». As problemáticas poder-nos-ão parecer desajustadas pois as democracias modernas à muito que deixaram de colocar, na esfera pública, a questão da reunião e do medo como foco de debate. O que não significa que deixe de as analisar. Todo o poder que tem como sede legitimadora o medo tende a fracassar. Exemplo disso o fim das ditaduras ocidentais e o termo dos projectos comunistas.
«O Homem é apolítico». Hannah Arendt lembra que a manutenção dos mitos conduz o homem à menoridade culpada. Explicito: incapacidade de usar, livremente, do seu próprio entendimento. Esta fuga à menoridade culpada permite-lhe perceber que o Homem não é por natureza político nem tem nada de político na sua essência. A política não brota do Homem mas da sua interacção. Daí a ideia de que a política e a liberdade não são coisas em si mesmas mas construções. «Trata-se da guerra da revolta de cada um contra todos os outros, que são odiados porque existem sem sentido, sem sentido para o Homem criado à semelhança do isolamento de Deus». A concepção pessimista antropológica hobbesiana – o Homem é mau por natureza – é apontada como a responsável pela construção dum espaço intermédio de convivência humana. Elucido: O Homem entregue a si mesmo tende para a brutalidade e para o despotismo. O estado de Brutalidade ou como prefere chamar-lhe Hobbes, «de natureza», aspira ao domínio do Homem pelo próprio Homem. Essa construção intermédia de convivência é a que se estabelece entre a natureza bruta do Homem e a perfeição de Deus. Os Estados são organizações humanas que tendem para condições de domínio intermédio onde o Homem pode fruir a liberdade e onde a acção política, ao cumprir a sua promessa – criação de um espaço de liberdade comum ao Homem – organiza indivíduos diferentes tendo em consideração «a sua igualdade relativa e contrapondo-a às suas relativas diferenças». Percebe-se, pois, que a tendência dos seres humanos para a reunião – «quer a título privado ou social, quer a título público ou político» – os junta e separa uns dos outros, simultaneamente, num mesmo espaço. A quando da reunião dos homens, «o mundo emerge entre eles», e é nesse espaço intermédio, o qual o estado de brutalidade do Homem não proporciona e, para o qual, a «concepção monoteísta de Deus» não soube dar resposta, que são conduzidos os assuntos respeitantes ao Homem.
É-se levado a crer, e do meu ponto de vista erradamente, que a resposta à pergunta de partida – qual é, afinal, a promessa da política? – se torna tão simples e conclusiva de enunciar: a liberdade. Hannah Arendt, por força dos acontecimentos catastróficos que assolaram a humanidade no século XX e sobre os quais a política acarreta responsabilidades, particularmente as experiências totalitárias e a bomba atómica, coloca-se perante uma questão bem mais radical, agressiva e macabra: «continuará a política a ter ainda qualquer sentido?». A verdade, esta inquestionável, surge quando se concebe a política como um «mal necessário» à manutenção da vida humana. Neste sentido a política começou a «banir-se» a si própria. O seu sentido transformou-se, por muito que nos custe, em ausência de sentido.
A pólis, entendida à luz do conhecimento familiar dos Gregos, traduz a «libertação» realizada pela força e pela coerção baseada no «governo absoluto» exercido por cada chefe de família em sua casa. Embora o sentido do domínio político não fosse entendido como meio de tornar a liberdade humana possível constituiu, ele próprio, o «pré -requisito» indispensável no conhecimento de todas as coisas políticas. Aristóteles acresce que a política, no sentido grego, assume o entendimento «de fim e não de meio». Em contraponto, implicada em sentido moderno, a pólis assume-se como o espaço «intermédio», onde os homens, na sua liberdade «específica» – a construída pelo relacionamento humano – interagem uns com os outros sem coerção e resolvem os seus assuntos por meio «da palavra e da persuasão recíprocas». Hannah Arendt propõe que entendamos a pólis como a mais alta forma de vida humana, em comum, e a única onde se pode gozar uma «liberdade específica» – a edificada – pelo relacionamento dos homens e não a que advém da sua natureza. A autora compreende a política, ou a sua promessa, como o instrumento que conduz o Homem à «busca dos seus próprios fins». Um garante da vida no seu sentido mais amplo e um meio pelo qual se dispõe da «felicidade mínima à existência». A política deve, assim, cumprir a sua preocupação primeira – «a vida comum dos homens e não de anjos» – no sentido do Estado, soberano regulador, que detém o monopólio da força bruta, puder tomar as medidas capazes de impedir a «guerra de todos contra todos». Hannah Arendt toma em consideração um aspecto categórico, desta espécie de liberdade política, o de ser uma «construção espacial». O mundo, no espaço criado pela força das leis, permite ao Homem mover-se em liberdade. A noção de «liberdade específica» decorre do entendimento da pólis – construção intermédia de convivência que se estabelece entre a natureza bruta do Homem e a perfeição de Deus – como espaço de «correcção da natureza humana». «O que fica fora desse espaço é sem lei» e, por isso, sem mundo – «no que à comunidade humana importa» – é um deserto.
O meu entendimento da problemática – qual é, afinal, a promessa da política? – aponta noutro sentido. Na Grécia Antiga a expressão política e liberdade confundia-se. Através do desenvolvimento dos meios de força, provenientes do lodo obscuro do projecto moderno, hoje, a política tende para ameaçar a liberdade. Ironia macabra. Os totalitarismos do século XX criaram e desenvolveram a política segundo a promessa da «ordem pela força». Promessa que, sobre qualquer ponto de vista analítico, cumpriu-se. As democracias ocidentais prosperaram a política e a sua promessa como «a liberdade pela obediência». A anarquia propõe um entendimento, utópico e diletante, da política assente na promessa da «liberdade pela inexistência de toda e qualquer força coerciva». Estas constatações tétricas, adoçadas pela verdade oportuna, até oportuna de mais parece-me, de que «a democracia é um péssimo regime mas o menos péssimo de todos», levam-me a colocar a possibilidade da política assumir, de futuro, a promessa da filosofia ou da «filosofia política», como alguns aclaram, a que alude no sentido do esclarecimento. Sobre a tutela do esclarecimento, a promessa da política, deve possibilitar a emergência do Homem sobre a ignorância tornando-se autónomo e usando, livremente, o «senso crítico» que o dirige, assim, para a «maioridade» – o esclarecimento. Os projectos políticos que se seguiram ao iluminismo do século XVIII «transformaram a política em história ou substituíram a história à política». Tenho como verdade o seguinte: assumir que a promessa da política é o esclarecimento é arrogar, também, o projecto iluminista como esboço dum iluminismo em devir. Fica na retina, contudo, a fantasia Pessoana de que «vivemos livres e criativos demais para nos imporem limites».


André Manuel Vaz

17 de outubro de 2008

O conto: A evasão e a glória.
A história de João de Castro Mendes e o Portugal burguês dos sonhos gigantes.

João de Castro Mendes, filho de Manuel Ferreira de Castro e Maria da Conceição Mendes, nasceu e cresceu no Alentejo. Os verdes anos passados entre os campos de trigo e o fruir da liberdade. A infância tolerante no recato do Outono e a juventude excitada pela jovialidade da primavera. Os rasgos cor-de-rosa apareciam a medo. Um medo legítimo para quem se conheceu modesto, afável, moderado e complacente.
A suave infância e a perversa juventude de quem quis viver tudo ao mesmo tempo. Agora, mais do que nunca, Castro Mendes partia à descoberta da dissidência ou do seu acentuar. Conheceu Joana Amaral Tomás num passeio costumeiro de manhã primaveril. A inocência de Joana contrastava com os deslumbres viciosos de Castro Mendes. João era libertino e Amaral Tomás casta. Cedo se tornaram amigos e confidentes. Enquanto Joana desfrutava, candidamente, do seu primeiro beijo João de Castro fabricava fantasias copiosas. Os passeios alongavam-se pelas tardes soalheiras mesmos quando de noite o frio penetra nos quentes corações. Um amor fugaz terminara. João de Castro queria conquistar o mundo mas Joana apenas conquistá-lo. Ironia.
João de Castro Mendes viajou para Lisboa. Por lá viveu e morreu. Perdeu-se em sonhos gigantes. Joana Amaral Tomás viveu e morreu no Alentejo dentro do seio pacato da família que construiu.
Na retina, João de Castro Mendes, traduz o ruralismo progressista diletante. Joana Amaral Tomás o tradicionalismo lusitano. Um conflito macabro num Portugal com saudades de futuro.

Franco Infante de Melo

9 de outubro de 2008

A verdade incómoda

O discurso político caseiro, típico das pretensões eleitoralistas, não olha ao quadro internacional.

Enquanto os partidos do «Bloco Central» definem a estratégia para 2009 as preocupações internacionais redundam. A Direita vive, hoje, a ressaca do cavaquismo. Como movimento político-económico, o cavaquismo, representou o culto do executivo forte, da obra pública, do enriquecimento da Classe Média e a definição e ocupação, por parte do Estado, de sectores estratégicos da economia. Portugal assumia o Modelo Económico Misto onde o sector público e privado conviviam em harmonia e onde o Estado dispunha do papel regulador de toda a actividade económica. Sobre qualquer ponto de vista analítico o cavaquismo colocou Portugal na rota da modernidade. O cavaquismo findou e deixou saudades, os liberais nunca se impuseram e os populistas apaixonaram o PSD cada vez mais fraccionado. Manuela Ferreira Leite fez renascer o Cavaquismo, ergueu o silêncio, fez regressar as elites à pilotagem mas os murmúrios dos divergentes acentuam-se a cada dia que passa. Nunca o PSD esteve tão longo do rumo e os movimentos do anti-excesso brotam.
A Esquerda desfruta do triunfo, não demodèe, da velha máxima: «Em política a melhor propaganda é aquela que não parece propaganda». O Partido-Socialista montou uma cortina de ferro, à qual, só o Bloco de Esquerda tem acesso. Explicito: o intensificar de movimentos marginais, movimentos políticos que conhecem a sua génese no interior dos partidos mas que só adquirem expressão fora deles, deixa antever que dificilmente o PS auferirá de nova maioria absoluta. Manuel Alegre, poeta absorvido pelo sentimento de justiça social, outrora rotulado pelos capangas da Máquina de aposição interna, constituiu-se no veículo de aproximação ao bloco, o qual, o PS reclamara. Da anexação do Bloco ao PS resultará o «Esquerdão». Elucido: o bloco conquistou a Esquerda e o PS o Centro. O contacto de ambos manifesta-se na abertura do PS às questões sensíveis e pelo repensar do Bloco em matéria de rigor orçamental e metas europeias. Nesta conjuntura o «Esquerdão» garante duas clientelas eleitorais: o «Centro excêntrico», romantizado pelo Bloco, e o «Centro Moderando» afecto ao PS.
Kant escreveu: «o uso privado da razão acarreta limitações em nome da manutenção da ordem pública e da consciência de felicidade do Homem». Não reitero a ideia. Angola está a morrer. O Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) obteve, nas legislativas de 5 e 6 de Setembro, 81,64% das intenções de voto. Assistiu-se ao controlo do Estado pelo próprio Estado e ao instrumentalizar dos meios de comunicação. Angola reinventou a chamada Fórmula Globo. Elucido: todo o movimento político brasileiro apoiado pela Estação Globo saiu vencedor.
Há um Portugal maquiavélico e negocista na linha da «governação sem governo» trazida pela Europa onde a razão de Estado – os fins justificam os meios – é a máxima dominante. Angola está sem destino e tornou-se um país politicamente inviável onde actua um ordenamento político corrupto. Só os Portugueses não vêem.


André Manuel Vaz